Este local é, com certeza, dedicado aos 90% do meu cérebro que não tenho certeza de para que servem... Entre um cigarro e outro, entre o dia e a noite, nas beiradas de um talvez qualquer, fico gastando palavras, me espreguiçando nas frases, me escondendo entre as reticências...
Ao leitor deixo o agradecimento pelas palavras que eu não disse, mas que, ainda assim, acabaram por ser ouvidas...


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

SOBRE O FILME "TEMPOS DE PAZ"

 E hoje ouso contar de minha noite. Assisti o filme "Tempos de Paz", com Toni Ramos e Dan Stulbach. Não dá para resistir, é preciso partilhar. O filme em si parece meio morno, mas vai ficando melhor, primeiro quando Dan declama o poema "Mãos dadas" (Poema da obra Sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade) e depois, quando se inicia a batalha verbal entre Toni Ramos e Dan, este um imigrante polonês chegando ao Brasil e aquele um agente alfandegário e ex-torturador. Ouvir Dan declamar o "Monólogo de Segismundo" só se compara à delicia de um banho frio após um extenuante calor, é como encontrar um veio de ouro no meio de um lodaçal... é imperdível, estupendo, cativante. Abaixo o monólogo em si, como letra morta no papel. Eis que se faz imprescindível ver o filme afim de que se entenda o que é dar vida às palavras, matizá-las em tons fantásticos, eternizá-las no solo fértil da memória, torná-las calor abrasivo a aquecer mesmo o mais frio dos corações. Foi isso que Dan Stulbach fez. Tiro meu chapéu, meu gorro, minhas máscaras e aplaudo muito e em pé!!!!!
 
"Ai miserável de mim e infeliz!
Apurar, ó céus, pretendo,
já que me tratais assim,
que delito cometi
contra vós outros, nascendo;
que, se nasci, já entendo
qual delito hei cometido:
bastante causa há servido
vossa justiça e rigor,
pois que o delito maior
do homem é ter nascido.


E só quisera saber,
para apurar males meus
deixando de parte, ó céus,
o delito de nascer,
em que vos pude ofender
por me castigardes mais?
Não nasceram os demais?
Pois se eles também nasceram,
que privilégios tiveram
como eu não gozei jamais?


Nasce a ave, e com as graças
que lhe dão beleza suma,
apenas é flor de pluma,
ou ramalhete com asas,
quando as etéreas plagas
corta com velocidade,
negando-se à piedade
do ninho que deixa em calma:
só eu, que tenho mais alma,
tenho menos liberdade?


Nasce a fera, e com a pele
que desenham manchas belas,
apenas signo é de estrelas
graças ao douto pincel,
quando atrevida e cruel,
a humana necessidade
lhe ensina a ter crueldade,
monstro de seu labirinto:
só eu, com melhor instinto,
tenho menos liberdade?


Nasce o peixe, e não respira,
aborto de ovas e lamas,
e apenas baixel de escamas
por sobre as ondas se mira,
quando a toda a parte gira,
num medir da imensidade
co'a tanta capacidade
que lhe dá o centro frio:
só eu, com mais alvedrio,
tenho menos liberdade?


Nasce o arroio, uma cobra
que entre as flores se desata,
e apenas, serpe de prata,
por entre as flores se desdobra,
já, cantor, celebra a obra da natura em piedade
que lhe dá a majestade
do campo aberto à descida:
só eu que tenho mais vida,
tenho menos liberdade?


Em chegando a esta paixão
um vulcão, um Etna feito,
quisera arrancar do peito
pedaços do coração.
Que lei, justiça, ou razão,
nega aos homens - ó céu grave!
privilégio tão suave,
exceção tão principal,
que Deus a deu a um cristal,
ao peixe, à fera, e a uma ave?"


MONÓLOGO DE SEGISMUNDO
(LA VIDA ES SUEÑO, Ato I, Cena I - de Pedro Calderón de la Barca)

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